Devoir de Philosophie

Afinidades aporéticas

Publié le 03/04/2014

Extrait du document

Afinidades aporéticas Bernardo Bianchi Muito se falou da suposta influência de Spinoza sobre Marx. Em 1965, Althusser afirmava: "a filosofia de Spinoza introduz uma revolução teórica sem precedente na história da filosofia, (...) de modo que nós podemos tomar Spinoza, do ponto de vista filosófico, como o único ancestral direto de Marx" (Althusser, 1, p. 128). O presente artigo visa a avaliar se existe, de fato, uma relação historiográfica entre os autores ou se a tão propalada "ancestralidade" não seria tão-somente o produto de certo pensamento romântico que, enamorado pelas doutrinas de Spinoza e de Marx, buscaria algo mais do que meras relações teóricas entre ambos os pensadores. Em um texto seminal para a metodologia collingwoodiana, Quentin Skinner argumenta que toda suposta influência deve ser submetida a um triplo exame. Assim, a respeito da influência de Spinoza sobre Marx, devemos tomar algumas precauções. Em primeiro lugar, é preciso verificar, concretamente, se Marx leu Spinoza. Em segundo lugar, é preciso confirmar que Marx não poderia ter extraído as ideias que ele mobiliza de um terceiro autor. Em terceiro lugar, é preciso comprovar que Marx não poderia ter chegado às suas conclusões independentemente, sem ter se valido do pensamento de Spinoza (Quentin Skinner, 1, p. 75-6). Ainda que possamos considerar as precauções metodológicas de Skinner algo exageradas, mesmo porque ele prevê duas provas negativas, as quais, sendo negativas, exigem um esforço de investigação incomensurável, elas nos servem, de todo modo, como um alerta. No presente artigo, portanto, pretendemos delimitar um conjunto de ideias que Marx pode, de fato, ter assimilado a partir das suas leituras de Spinoza. Por outro lado, pretendemos demonstrar ainda que, a partir do momento em que Marx se distancia do legado spinozista - e isto tanto porque ele escreve contra o filósofo sefardi em A Sagrada Família quanto porque ele deixa de mobilizar o nome de Spinoza nos seus escritos posteriores -, sua forma de argumentar se aproxima, a contrario sensu, do pensamento de Spinoza. Assim, procuraremos demonstrar que, não obstante a recusa de Spinoza, é a partir de A Sagrada Família que Marx, a despeito da ausência de uma influência verdadeira, poderia ser tomado como um cúmplice teórico de Spinoza. Spinoza: entre Demócrito e Epicuro As primeiras referências de Marx a Spinoza remontam a 1841, quando Marx, um estudante de filosofia, preparava sua tese de doutorado, intitulada A diferença entre as filosofias da Natureza de Demócrito e Epicuro, que seria apresentada em abril daquele ano. A relação entre Marx e Spinoza passa ao menos duas vezes pelos atomistas gregos. Na Carta 56, Spinoza afirma que Platão, Aristóteles e Sócrates não detêm nenhuma importância aos seus olhos, ao contrário de Demócrito, Epicuro, Lucrécio e os demais atomistas. Em "A corrente subterrânea do materialismo do encontro", de 1982, Althusser contrapunha determinada tradição materialista ao materialismo racionalista, que teria permanecido preso a categorias tais como "origem", "sentido, "razão", "fim" e "finalidade" (Althusser, 2, p. 33), e que, assim, nada mais era do que uma forma disfarçada de idealismo. Na sua tese, Marx procura apreender, a partir da imagem do clinamen epicuriano, num mundo de necessidade, a existência da liberdade humana sem recorrer, portanto, ao ponto de vista idealista. A liberdade é assim concebida como uma margem de indeterminação existente no corpo das coisas. Esta - a questão principal do trabalho de Marx - interage ainda com um problema subsidiário: a reabilitação de Epicuro. Marx encerra sua tese afirmando: "Epicuro é, pois, dos Gregos, o maior filósofo das 'luzes'" (Marx, 1, p. 283). Marx insiste, ao longo da tese, numa oposição radical entre Demócrito e Epicuro, que, fantasmagoricamente, remeteria, respectivamente, ao próprio confronto entre Kant e Hegel. Estamos, nesse sentido, muito distantes do senso comum, segundo o qual muito embora os sistemas filosóficos de Demócrito e Epicuro sejam basicamente iguais no que concerne à natureza, suas consequência, no âmbito da ética, são radicalmente diferentes. Marx insiste que os dois autores divergem também na física e na teoria do conhecimento e que é a partir de tais divergências que se deve compreender as notáveis diferenças com relação à ética. A sua tese deixa entrever, no entanto, traços de uma terceira problemática, que, a julgar pelos cadernos preparatórios, ocupava o espírito de Marx à época: a crítica da religião. No prefácio da obra, Marx cita Epicuro: "ímpio não é aquele que rejeita os deuses da multidão, mas aquele que atribui aos deuses as opiniões da multidão". Também as duas seções que nos restaram do apêndice, um dos quais dedicada a uma crítica a Plutarco, confirmam a presença de vestígios desta terceira questão no corpo da tese. Muito embora o problema do materialismo, tendo em vista a Carta 56 de Spinoza, bem como a crítica da religião possam sugerir a pertinência do filósofo holandês no desenvolvimento da tese, Spinoza não é convocado em nenhum momento da tese, a não ser uma única vez e de forma absolutamente casual. 1.1 As referências a Spinoza na tese de doutorado e nos cadernos preparatórios O nome de Spinoza figura, pois, apenas uma vez na tese de Marx (Marx, 1, p. 251). E três outras vezes, duas num mesmo parágrafo, nos cadernos de estudos que o auxiliaram na preparação da monografia (Marx, 1, p. 183-184). Na tese propriamente dita, a referência não revela nada de especial. Marx se vale de Spinoza para afirmar, na forma de palavra de ordem, que a "ignorância não é um argumento" - muitos comentadores afirmam que Marx teria se inspirado no Apêndice da Parte I da Ética, quando Spinoza denomina "asilo da ignorância" o fato de os homens recorrerem à vontade de Deus quando não podem explicar um determinado evento. Mas o mesmo argumento também pode ser ter por base o capítulo VI do TT-P, em que Spinoza analisa os milagres. No fragmento 10 da seu caderno dedicado ao Tratado, Marx copia Spinoza: "engana, pois, verdadeiramente, a si mesmo quem, ao ignorar uma coisa, recorre à vontade de Deus; desse modo, apenas confessamos nossa própria ignorância". (2, p. 34). Nos cadernos preparatórios, a primeira referência ocorre no quarto caderno: beatitudo non virtutis praemium, sed ipsa virtus (Marx, 1, p. 163). Marx faz uso desta notável frase de Spinoza (Ética V, 42) para esclarecer os distanciamentos entre Lucrécio e Plutarco. A ética vislumbrada por Marx não consistiria no ensimesmamento subjetivo típico de uma perspectiva moralista, como aquela que ele identifica em Lucrécio - espécie de anátema às inversas que consistiria no interdito ao gozo eterno da mente. A beatitude não pode ser o resultado de uma espécie de fuga do mundo, como uma reclusão monástica. Pelo contrário, a beatitude é o resultado de um vigor do corpo e da mente. Lucrécio é o filósofo da primavera, ébrio de vida, enquanto Plutarco é o filósofo do inverno, ausente do mundo. A referência a Spinoza é, portanto, plenamente justificada. Morfino, em artigo não publicado (Morfino, 1, p. 7), lembra que embora Marx possa ter lido a frase em Geschichte der neueren Philosophie, escrita por Feuerbach alguns anos antes, ocorre que a frase de Spinoza, que aparece no parágrafo 98 da sua obra, está redigida em alemão: "Die Seligkeit ist daher nicht der Lohn der Tugend, sondern die Tugend selbst". Desse modo, é improvável que Marx, após ter lido o texto de Feuerbach, tenha retraduzido a frase em latim ao copiá-la nos seus cadernos preparatórios, que eram de uso pessoal. Tudo indica que Marx tenha lido a frase diretamente na obra de Spinoza e na língua original. Mais à frente, no sexto caderno, escreve Marx: (...) nós poderíamos aceitar o julgamento de Baur de que nenhuma filosofia da antiguidade carrega com mais intensidade a marca da religião que aquela de Platão. Mas o significado disso não seria senão este: nenhum filósofo ensinou a filosofia com mais entusiasmo religioso, para nenhum filósofo a filosofia possuía com mais intensidade a determinação e a forma de um culto religioso. No que concerne aos filósofos mais intensivos, como Aristóteles, Spinoza, Hegel, seu próprio comportamento possuía uma forma mais universal, menos imersa no sentimento empírico; mas é por isso que o entusiasmo em Aristóteles, quando ele glorifica a ?????? (contemplação) como aquilo que existe de melhor (?? ???????? ??? ????????, o mais agradável e o melhor), ou quando ele admira a razão da natureza no tratado ???? ???? ?????? ??????? (de animante natura) [Arist. De partibus animalium 645 a], e mais recentemente o entusiasmo em Spinoza, quando ele fala da contemplação sub specie aeternitatis (sob a perspectiva da eternidade), do amor de Deus, ou da libertas mentis humanae (liberdade da mente humana), ou ainda o entusiasmo em Hegel quando ele desenvolve a realização eterna da ideia, o grande organismo do universo dos espíritos, são mais sólidos, mais calorosos, mais benevolentes ao espírito universal formado pela cultura; é ainda por isso que estes entusiasmos, uma vez consumidos, tornam-se ...

« qua is, sendo nega t ivas, exigem u m esforço de i nvest igação i ncomensu rável, elas nos servem, de todo modo, como u m ale r ta.

No p resen te a r t igo, po r tan to, p re tendemos del i m i ta r u m conju n to de i deias que Ma r x pode, de fa to, te r assim i lado a pa r t i r das suas le i t u ras de Spi noza.

Por ou t ro lado, p re tendemos demonst ra r ai nda que, a pa r t i r do momen to em que M a r x se d is tancia do legado spinozista – e is to t a n to porque ele escreve con t ra o f i lósofo sefa rd i em A Sag rada Famí l i a quan to porque ele deixa de mobi l iza r o nome de Spi noza nos seus escr i tos poste r io res –, sua fo r ma de a rgumen ta r se ap rox i ma , a cont ra r io sensu , do pensamen to de Spi noza.

Assi m, p rocu ra remos demonst ra r que, não obstan te a recusa de Spi noza, é a pa r t i r de A Sag rada Famí l i a que M a r x, a despei to da ausência de u ma i n f l uência verdadei ra, poder ia ser tomado como u m cúmp l ice teó r ico de Spi noza. 1.

Sp i noza: e n t r e D e móc r i to e E p ic u ro As p r i me i ras referências de M a r x a Spi noza remon tam a 1841, quando Ma r x, u m estudan te de f i losof ia, p repa rava sua tese de dou to rado, i n t i t u lada A d i ferença ent re as f i losof ias da Na tu reza de Demócr i to e Ep icu ro, que ser ia ap resen tada em ab r i l daquele ano.

A re lação en t re Ma r x e Spinoza passa ao menos duas vezes pelos a tom is tas g regos.

Na Ca r ta 56 , Spinoza af i r ma que Pla tão, A r is tó teles e Sócra tes não detêm nenhu ma i mpo r tâ ncia aos seus olhos, ao con t rá r io de Demócr i to, Ep icu ro, L uc récio e os dema is a tom is tas.

Em “A cor ren te sub te r rânea do ma te r ia l ismo do encon t ro”, de 1982, A l t h usser con t rapun ha dete r m i nada t r ad ição ma te r ia l is ta ao ma te r ia l ismo raciona l is ta, que te r ia pe r manecido p reso a categor ias t a is como “o r igem”, “sen t i do, “ razão”, “ f i m ” e “ f i na l idade”. »

↓↓↓ APERÇU DU DOCUMENT ↓↓↓